sexta-feira, janeiro 20, 2012

                                                              Elos

                                                         
                                                


             Juvenal tem muitas lembranças da infância. Família grande , pai, mãe e 04 irmãos.
            A mãe não trabalhava fora. Era analfabeta , cuidava dos filhos e em épocas que a situação apertava ela trabalhava fazendo faxinas em casa de família.De trabalho regular, só o pai que era vigia de uma grande empresa. Trabalhava 12 horas, usava um bastão , revólver e um relógio que ele utilizava para marcar as voltas que dava em todo quarteirão da empresa. No verão  o trabalho não era de todo ruim, principalmente quando fazia o turno do dia. Havia movimento. Podia prosear com um ou outro e o tempo passava mais rápido.
            O problema era à noite. Aí o trabalho se tornava muito solitário, além de perigoso . Tinha que fazer a ronda de rua e dentro das salas da empresa. Nestas ocasiões carregava um chaveiro com dezenas de chaves.
            Tinha que entrar, revisar, fechar portas. Naquela época não havia alarmes eletrônicos,cercas elétricas.
            Cada vez que o pai, Romeu, chegava em casa sentiam um alívio. Isso na rondas noturnas .que era sempre alternada . No inverno era um trabalho difícil, não dava nem para tentar ficar mais tempo dentro do local, porque tinha que marcar as voltas realizadas.Depois o chefe conferia se ele tinha feito tudo nos conformes.
Era muito cuidadoso com tudo, inclusive o uniforme. Acho que ele se sentia como um policial, alguém com algum poder ,pois zelava pelo patrimônio da empresa, carregava arma, tinha chaves e cadeados de lugares que precisavam ser muito bem cuidados, entre eles o cofre onde depositavam todo o dinheiro do dia. Não havia carro forte como agora, assim não era possível depositar o dinheiro ao final do expediente . Isso era feito pelo contador na manhã seguinte. O pior era em final de semana que acumulava o dinheiro de sexta e sábado pela manhã.
            Nestas ocasiões ele chegava a sentir calafrios na barriga só de pensar o dinheirão que ficava lá guardado. Com todo aquele dinheiro lá não era de duvidar que alguém tentasse assaltar.
            Juvenal recorda as conversas que mantinha com o pai quando ele contava que apesar de não ter estudo não se sentia rebaixado perante as outras pessoas, pois era uma pessoa de confiança , gozava de uma boa reputação na empresa,  e zelava pelo patrimônio alheio.
            Só que Romeu não sabia que uma turma das imediações cuidava toda a sua rotina. Preparavam um golpe, que ao ser aplicado funcionou como planejaram. Assaltaram o local, levaram uma razoável quantia de dinheiro e por ser gente habilidosa no trato da safadeza , apesar de pegos, envolveram o pobre que para sua defesa só tinha a sua palavra e o histórico de vida, que não serve de muito quando a malandragem é grande.Os ladrões afirmavam que eles agiram de acordo com o vigia, que facilitou a entrada deles .
            Apelos alegando a vida pregressa, as condições de pobreza, a falta de condições de pagar advogado não valeram de nada. Romeu ficou preso para investigação por algum tempo. Os demais saíram rápido pois não precisavam de assistência gratuita.
            Romeu perdeu o emprego e a sanidade. Vivia fechado no quarto (depois de sair da triagem onde ficou preso algum tempo) Examinava cadeados que ele pedia para Juvenal trazer , pensando , arquitetando saídas para tentar descobrir como eles tinham roubado, sem violarem portas, cadeados, cercas e não achava solução.
            Acabou sendo internado pela família em um hospital psiquiátrico, de onde fugiu e passou a viver nas ruas. Não conseguiram mais encontrá-lo.  A mãe –Filomena- teve de trabalhar de doméstica deixando os filhos na creche.
            Juvenal que era o mais velho, não pode deixar de lembrar do pai, todas as vezes que fecha os cadeados das portas do sanatório, onde hoje trabalha.
            Os cadeados que se abriram para seu pai, o mantém prisioneiro das lembranças .

Publicado no Livro "Contos de Inverno"-CBJE
Agosto de  2011

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                        Olha o trem...

                                                      

Mais um dia estava começando. Uma jornada de trabalho findando.
Estava cansado. A noite fora longa.
Maio é um mês que o frio e a umidade da região já começam a formar denso nevoeiro. Não gosto de nevoeiro. Encobre tudo ao redor. O céu, as estrelas, a lua e até os pensamentos.
O cérebro parece que esvazia, o barulho da máquina vai tomando conta e nos hipnotizando. Aí complica . Não dá para dormir.
Como deixar 40 vagões carregadinhos de cimento, madeira, cerâmica, mais os tanques de combustível ser guiado por um quase moribundo? Era assim que me sentia quando o sono chegava e não podia deixar que ele se instalasse.
 Sempre fui um bom maquinista. Atento, pulso firme, responsável, cordial com os colegas na companhia. Afinal, era um bom emprego. Federal, com regalias, boa aposentadoria. E ela  se aproximava. Contava os meses que faltavam para chegar e ser a companheira de lazer, nas pescarias, nas viagens sem preocupações para o resto da vida.
Estes pensamentos até me deixava mais animado, apesar da sonolência que permanecia.
        Estava próximo da penúltima estação. Mais um cruzamento e  estaria lá.
No tempo dos passageiros ali pegava muitos estudantes que iam estudar na cidade. Levantavam muito cedo os coitadinhos. Tinha  criança de seus 13 anos que iam  a estação em no centro da cidade e depois caminhavam até o colégio em diferentes pontos .
Atualmente, o que ocorria, de vez em quando, embora fosse proibido, era dar uma carona para alguém conhecido que se empoleirava junto na cabine. Hoje, para tirar o sono, bem podia ter sido um desses dias.
O trem estava se aproximando da casa de pedra junto aos trilhos, bem no cruzamento.  Ali estava ela.
O apito! Devia ter apitado antes. Não podia vacilar. Está certo, era cedo. Não havia movimento no cruzamento esta hora, mas o sinal é obrigatório.
As árvores nas proximidades dos trilhos atrapalham a visão dos que passam naquele ponto.
 Gostava de cumprir à risca as regras de segurança. Devia apitar bem antes para sinalizar que se aproximava. Na próxima jornada tomaria mais cuidado. Iria levar mais café. Um rádio de pilha, embora gostasse do papo interior desenvolvido na cadência do trem. Era como se a máquina colocasse seus pensamentos no rumo certo. Nos trilhos, como se costuma falar.
Desta vez, porém foi diferente. Os pensamentos saíram dos trilhos.
Só foi possível perceber quando arrastava metros à frente, o carro que não ouviu o apito do trem e atravessou os trilhos...


  Publicado no livro:Contos de Verão- Dezembro de 2011
          Publicado na Antologia on line:

          http://www.camarabrasileira.com/cve11-030.htm


         Publicado  no site: 
http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/3598590
              Data:2012.04.06

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PENITÊNCIA
                                                                   
                                                                                               
Clarinda é uma mulher bonita. Deve ter uns quarenta e poucos anos.
Estatura mediana, corpo bem feito, nem gorda ou magra, curvilínea, cabelos bem curtinhos, pele morena do sol, que ela apanha em sua caminhada diária, por todo lugar, a qualquer hora, geralmente na área central da cidade.
         A boca sempre pintada. Único indício de sua vaidade. Anda sempre arrumadinha.
         Quem a vê circulando pelas ruas da cidade não imagina que tenha alguma  aflição a lhe atormentar a alma. Sua face é tranqüila.. Talvez possam imaginá-la uma aspirante a atleta em fase de treinamento intenso pois anda sempre pelo meio da rua. Também pode ser que precise se exercitar bastante por questões de saúde . Na calçada ninguém a vê  nunca.
         Seu vai-vem diário tem algumas paradas com  hora e local certo. Nas igrejas, centrais e em horários de missa.
         Chega um pouco mais cedo.Ali ela começa os preparativos.Não são muitos, mas significativos. Mostram respeito na indumentária, devoção na face.
         Se está de bermudas, veste uma saia discreta ou uma calça longa.Ali mesmo, na frente do templo..
         Antes do início da missa ela coloca um véu branco que lhe cobre a cabeça, desce pelos ombros e cai até o joelho. Segura o véu com as mãos que juntas próximo ao peito completam o visual da Maria que ela carrega dentro de si e expande no olhar em cada reza, canto ou ato penitencial . No ofertório a oferenda é o sofrimento diário para ver se tira de cima dos ombros um pouco da dor que leva consigo desde que sua linda menina de cabelos negros , cheios de cachos que lhe caíam nas costas foi atropelada por um motorista bêbado que subiu na calçada.É  ela que  Clarinda coloca nos braços da Virgem toda vez que se ajoelha lá na frente do altar e estende os braços fervorosamente.
         
 Publicado no livro : Joaquim Monks & amigos- Editora Alternativa
Publicado no site:www.recantodasletras.com.br
Data:2012.01.20


Ritual


Como de hábito levanto-me , faço a higiene , como alguma coisa e saio, não sem antes pegar meus objetos indispensáveis para a peregrinação diária- a bíblia , o terço.e o meu crucifixo.
Gosto de ler as passagens, os salmos , de cantar os hinos de louvor a Deus .Gosto daqueles mais tradicionais, mais solenes . Hoje tem algumas em ritmo mais moderno que eu acho até desrespeitoso com Deus, Jesus, Maria e os santos em geral.
Modéstia à  parte, tenho boa voz, canto bem e alto. .Tanto que às vezes pego as pessoas me olhando um tanto desconfiadas - isto quando dá o acaso de cruzar o olhar, porque não fico me exibindo, nem olhando para os outros.   Devem achar que sou louco. Mal sabem que eu também já pensei isso. Mas foi em outros tempos.  Sou assim, meio bicho do mato, de pouca conversa e poucos olhares. Vivo dentro da linha que tracei para minha vida. Pelo menos  acho que fui eu.
Cumpro um ritual diário.
Vou na missa todos os dias.
Antes fico ali horas a fio. Passeio na volta , olhando cada detalhe da parte de fora, até porque tem hora para abrir.O interior conheço cada detalhe. É como se fosse minha casa. Acompanhei as poucas mudanças que ocorreram.Vou ali desde pequeno, antes de sair a correr mundo à procura de explicações para coisas inexplicáveis ou para fugir dos caras que me procuravam.
Quando voltei e ainda não podia me expor muito, era onde eu ficava.
Chego cedo, fico sentado no banco embaixo da árvore, bem de frente para a porta. Leio, peço perdão, rezo. O terço todinho.Enquanto isso vai me subindo um sentimento que não sei explicar e me lembro de onde e como eu poderia estar  e tenho vontade de beijar os pés de Jesus por me permitir  andar por tudo . É quando eu me ajoelho e beijo o chão e fico de braços abertos agradecendo por esse mundão todo à minha disposição.
Em outras ocasiões fico de pé todo o tempo, afinal sacrifício , penitência e jejum limpam as impurezas da alma. Fico ali desafiando os postes e ver quem permanece mais tempo durinho, estaqueado só olhando para cima com aquele olhar de Jesus Cristo, só olhando pro pai, menos na hora algoz, claro, quando ele não agüentava mais e baixou os olhos de tão desanimado. Sei bem como é isso.
Agora não baixo mais . Ando sempre empertigado.O olhar sempre num ponto fixo. Sempre olhando para frente, reto, sem olhar para trás nem para os lados. Só para cima e para dentro de mim.
Talvez por saber tanto do cara e  tudo que ele deve ter sentido que ao me olhar no espelho até me acho parecido com ele. Quando não tinham me cortado o cabelo e a barba então,era mais ainda. Quase igual.
Aí depois de todo esse  ritual diário sento na porta da igreja e ali eu fico todo dia até a hora de assistir a missa e encerrar meu dia .Até recomeçar tudo de novo.

Publicado no livro:
Conto publicado no Livro "Contos de Grandes Autores Brasileiros" - Outubro de 2011
Publicado na Antologia on line:

Publicado no site:www.recantodasletras.com.br
Data:2012.01.20
Republicado no:http://www.recantodasletras.com.br/contoscotidianos/3503724
Data:2012.02.16